Data Analytics Organizations mar. 1, 2022
Como os trabalhadores informais se opõem ao seu “chefe digital”
O sustento desses autônomos depende das avaliações dos clientes ao invés das dos gerentes. Não é um relacionamento fácil.
Yevgenia Nayberg
Quem compra bens ou trata serviços online passou a contar com a orientação das estrelas – não as siderais, mas sim o sistema de classificação de cinco estrelas que agrega as avaliações de clientes sobre tudo, desde produtos a restaurantes a lares de idosos.
Nas plataformas de trabalho digital como Uber, TaskRabbit e Upwork, o sistema de classificação se aplica a indivíduos – com tremendas consequências para os que passam por avaliação.
“Perde-se em muito a variedade e textura que se dá em interações de trabalho”, diz Hatim Rahman, professor assistente de administração e organizações da Kellogg. Os trabalhadores compreendem rapidamente as desvantagens de um sistema de classificação excessivamente simples, acrescenta Rahman: “Começam a dizer: ‘Puxa, isso não faz sentido; muitas vezes a classificação que alguém me deu não representa com precisão o que acontece no contexto do meu trabalho’".
Talvez os trabalhadores não se importariam com os pontos baixos que consideram injustos se não houvesse a repercussão financeira que advém diretamente dessas classificações. A Uber, o TaskRabbit e o Upwork integram as classificações dos clientes nos algoritmos que determinam a visibilidade dos trabalhadores aos clientes, a elegibilidade para incentivos e a continuidade da participação nesse tipo de trabalho.
Na verdade, as plataformas criaram um sistema em que o papel tradicional do gerente foi totalmente terceirizado para os clientes e suas estrelas. Como Rahman e sua colega Lindsey Cameron da Wharton School descrevem em um novo artigo, “the rise of this algorithmically mediated customer control to monitor and evaluate individuals has effectively given many workers a new, digital ‘boss.’” (a ascensão do controle de cliente mediado por algoritmos para monitorar e avaliar indivíduos efetivamente designou um novo ‘chefe’ digital a muitos trabalhadores).
Rahman e Cameron pesquisaram como trabalhadores em plataformas de trabalho digital começaram a resistir ao poder dessas classificações, desde a verificação prévia de potenciais clientes à interrupção do trabalho no meio do projeto para evitar receber poucas estrelas.
Os pesquisadores dividiram a interação do trabalhador informal–cliente em três etapas – antes, durante e depois da tarefa – e descobriram que cada estágio gerava formas distintas de ações da pessoa visando recuperar parte do controle sobre o processo de avaliação.
A cada etapa subsequente, a capacidade dos trabalhadores de resistir a classificações injustas diminuía, observaram os pesquisadores. E o empenho para permanecer alerta sobre encontros de serviço prolongado e tentar manter altas classificações contribuíram para a exaustão entre os trabalhadores.
Os pesquisadores enfatizam que esses padrões provavelmente acarretam problemas também para as plataformas digitais. Os interesses dos clientes não estão necessariamente alinhados com os das plataformas, e provavelmente os clientes não são responsabilizados pelas classificações que atribuem ao serviço.
“Quando esse tipo de controle é terceirizado para pessoas sem interesse participativo em sua plataforma, sempre haverá lacunas", diz Rahman. "Dá margem a áreas de incompatibilidade e oportunidades de melhorar o sistema.”
Integração na economia de trabalho informal
Para a análise de plataformas de trabalho digital, Rahman se concentrou em um site que conecta freelancers com projetos, que pseudonimamente chamou de "FindWork", enquanto Cameron estudou uma plataforma de carona compartilhada, que chama de "RideHail". (As reais plataformas foram mantidas em anonimato para proteger a identidade dos trabalhadores.)
Os pesquisadores investigaram a dinâmica das plataformas ao usar o RideHail e o FindWork eles mesmos. Cameron passou três anos (2016 a 2019) como trabalhadora e cliente da RideHail; Rahman dedicou quatro anos (2015 a 2019) aos mesmos papéis na plataforma FindWork.
Como parte da pesquisa, realizaram entrevistas com trabalhadores e clientes e obtiveram acesso a informações de fontes de arquivo, que incluíram dados anônimos do FindWork relatando comunicações privadas de 2013 e 2014 entre freelancers e clientes durante projetos e materiais do site da RideHail, além de artigos, postagens em mídias sociais, vídeos do YouTube, guias de instruções, blogs e fóruns de discussão sobre a empresa.
Em todas as fontes e plataformas, os pesquisadores notaram haver padrões claros. À medida que os trabalhadores passam pelas diferentes etapas de uma tarefa, empregavam medidas de resistência específicas para cada uma delas. E à medida em que passavam para as próximas etapas, diminuiu a resistência aos clientes e suas classificações.
Na primeira fase, os trabalhadores tinham mais oportunidades de adotar táticas de resistência ocultas, uma vez que havia pouca informação disponíveis sobre eles aos clientes e esses ainda não podiam classificá-los. Suas estratégias naquele ponto da interação muitas vezes se resumiam a tentativas de atrair clientes – talvez com uma pergunta para avaliar as atitudes e, portanto, sua propensão a lhes dar uma classificação baixa.
Os pesquisadores descobriram que motoristas que suspeitavam que um potencial usuário provavelmente o classificaria com poucas estrelas cancelam uma viagem já de cara. “Eu nunca aceito um trajeto de um passageiro com uma atitude ruim, pois isso significa avaliações ruins", disse um motorista do RideHail. No FindWork, alguns freelancers entram em contato com clientes antes de iniciar um projeto para exigir uma classificação de cinco estrelas como pré-condição de trabalho.
"Em um supermercado, por exemplo, você não pode controlar que cliente vem no seu caixa", diz Rahman. "Mas, em nosso contexto, vemos os trabalhadores tentando reivindicar mais controle, porque sabem o que isso significa – aprenderam como evitar clientes ruins/não vantajosos".
Na segunda etapa, enquanto os trabalhadores estavam no meio da tarefa, seu poder de resistir à demanda ou reclamação de um cliente diminuiu – uma vez que tanto os trabalhadores quanto os clientes sabiam que, eventualmente, o cliente daria um certo número de estrelas ao trabalhador.
As táticas nesta fase incluem oferecer desconto para receber uma classificação alta. Alternativamente, alguns freelancers do FindWork pedem aos clientes que dividissem um único projeto em vários contratos, para que assim tivessem a oportunidade de receber várias avaliações altas de um único cliente que já conhecem e no qual confiam. Outra estratégia foi encerrar a tarefa prematuramente: um trabalhador que suspeitasse que a interação com o cliente estava indo mal, simplesmente cancela o que estava fazendo e, assim, some a possibilidade de uma classificação baixa – mesmo que isso também signifique não ser remunerado pelo trabalho.
“Em ambientes tradicionais, se um cliente for ruim, você pode pelo menos falar com o gerente. Entretanto, uma vez que as plataformas terceirizam o papel de gerente intermediário completamente para o algoritmo, vemos neste estágio intermediário uma sensibilidade muito maior dos trabalhadores referente a cada interação”, diz Rahman. “Eles trabalham para garantir que tudo saia o mais perfeito possível, e tentam mitigar os riscos de até mesmo uma classificação baixa".
Na terceira e última fase, com trabalhadores com menos recurso para questionar classificações baixas, eles precisam recorrer ao que os pesquisadores chamaram de estratégias tipo milagre tanto para fazer uma reclamação junto à plataforma ou dar ao cliente uma classificação baixa quando suspeitam que o cliente agiu da mesma maneira. É improvável que essas táticas consigam remover ou alterar a classificação baixa, mas os trabalhadores tentam mesmo assim, dada a importância das classificações para o seu próprio sucesso na plataforma.
Procura coletiva de controle
Rahman acredita que as limitações dos sistemas de classificação das plataformas de trabalho e a frustração e exaustão que causam aos trabalhadores já começando a se manifestar como problemas para as próprias plataformas.
"Em todo o mundo, inclusive nos EUA, estamos vendo algumas polêmicas sobre como as plataformas tratam os trabalhadores", diz Rahman, acrescentando que os antigos motoristas da Uber e da Lyft estão criando cooperativas de propriedade dos trabalhadores em Nova York que oferecem serviços semelhantes – enquanto permitem que os trabalhadores tenham mais direitos de decidir sobre como seus locais de trabalho operam. “Sem dúvida observamos um certo grau de resistência em relação ao modelo de trabalho informal".
Porém, as implicações do estudo vão muito além dos já conhecidos em plataformas de trabalho informal, diz Rahman. No artigo, ele e Cameron explicam como, mesmo em ambientes de serviços tradicionais, os empregadores estão integrando mais tecnologia para solicitar avaliações de clientes em todas as etapas da experiência. Eles observam que os hospitais solicitam aos pacientes feedback em tempo real sobre os cuidados que recebem, o processo de agendamento, estacionamento e alimentação, enquanto as companhias aéreas buscam avaliações dos clientes sobre a experiência que tiveram na compra de passagens, check-in de malas e embarque.
"Um ponto que nosso artigo destaca é a necessidade de repensar se o modelo de terceirização de controle para um cliente e especificamente o uso de um sistema de classificação de cinco estrelas para todos os tipos de contextos de trabalho realmente funciona", diz Rahman.
Katie Gilbert is a freelance writer in Philadelphia.
Rahman, Hatim, and Lindsey Cameron. 2022. “Expanding the Locus of Resistance: Understanding the Co-constitution of Control and Resistance in the Gig Economy.” Organization Science. 33(1): 38-58.